Dádiva

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Sandra Serra

9H00. 35 graus à sombra. Café, por favor. Que seja duplo. As crianças já esperam no recreio; imunes ao calor e com as baterias carregadas para o dia correm, e correm, e correm. Riem, caem, choramingam, levantam-se e continuam a correr. Ao “comando” das educadoras, 90 crianças dividem-se em grupos, param por segundos, breves, e fixam-te. Bate mais rápido este olhar do que o meio litro de café bebido. Observam, cheiram, tiram medidas, decidem se gostam de ti ou não em pouco mais de 30 segundos e tu ficas parada, perplexa e a transpirar, à espera da sentença final. E de repente: “tenho sede”, diz meio palmo de quatro anos de idade olhando para a tua garrafa de água. Destapas a garrafa, ofereces de beber a uma e mais 20 também têm sede. E o veredicto é: inocente. Ufa!
Não é nada fácil. E, ao mesmo tempo, é tão fácil arrancar-lhes um sorriso aberto, um abraço, uma opinião sincera; é tão fácil levá-las a fazer, a querer fazer; é tão fácil dar-lhes a mão e permitires-te entrar no seu mundo. É tão fácil apaixonares-te.
No jardim-de-infância da minha terra muita coisa mudou desde o tempo em que se bebia Caprisonne e era “obrigatório” dormir a folga. Muita coisa, menos uma, a educadora. Foi minha professora, professora dos meus sobrinhos, é professora dos filhos dos seus antigos alunos (olhando para trás são poucos os professores que me ficaram para sempre na memória, e não só. Todos por boas razões. A Lídia, a senhora dona Catarina, a professora Lívia, o professor doutor Fausto Amaro. Assim tal e qual como eram chamados). Voltamos a juntar-nos, quase três décadas depois para trabalhar em conjunto com “os seus meninos” na apresentação do projecto “Histórias a várias mãos”. E…bom, ou estas educadoras se encharcam em Red Bull de dia e em Prozac à noite ou não sei. Como é que é possível, perguntas-te, viver 30 anos da tua vida a aturar crianças que não têm interruptor. Onde é o off? Não há!
Mas depois conheces o João Pedro, o Rui, o David, a Isis, a Lara e Madalena e percebes que, afinal, esta relação não é alimentada a estimulantes e calmantes. Este alimento chama-se dádiva. Sim, elas dão muito, mas recebem tanto.
Quando somos crianças a dádiva é algo natural em nós. Não gostamos muitas vezes de repartir o pacote de batatas fritas nem a boneca, mas damo-nos a nós próprios sem artifícios, capas protectoras, egos ou alter-egos.
Durante uma semana em contacto com estas crianças não fiquei com vontade de ser educadora de infância, é certo, mas fiquei com muita, muita vontade, de me armar em alquimista e descobrir uns pózinhos de perlimpimpim que fizessem com que nas nossas relações de adultos voltássemos a encontrar a palavra dádiva. Seria tudo tão mais fácil. Obrigada João Pedro, Rui, David, Isis, Lara, Madalena, Lídia, Lurdes, Ana, Guadalupe pela permissão de entrada no vosso mundo mágico.

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