Casa

Napoleão Mira

Escritor

Há sempre um instante, breve mas imenso, em que o coração se descompassa e o tempo abranda: é o momento em que, ao longe, se avista a torre altaneira da igreja matriz da minha pátria: Entradas. Não é apenas pedra. É farol, é azimute, é a bússola emocional que nos devolve à infância. A partir dali, o caminho já não é estrada, é memória.
Tudo o que fomos regressa connosco: os verões intermináveis, o ondular das searas, o chiar dos carros de bestas, o riso das tardes sem pressa. E de repente percebemos que o regresso não é apenas um destino, é uma forma de sermos outra vez inteiros.
Os cheiros chegam primeiro que as pessoas. São eles que nos anunciam o regresso antes mesmo de se abrir o postigo por onde se propagam. Vêm das cozinhas, lá ao fundo, onde fervem panelas antigas, tachos com histórias que não cabem em receitas. Misturam-se o refogado, o estalar da banha, a carne frita, o pão mole e o café acabado de fazer na “chocolatêra”. É um espólio existencial em forma de aroma, um inventário invisível que nos percorre os sentidos a velocidades vertiginosas. Cada cheiro um rosto. Cada travo uma lembrança. Depois, o silêncio. Esse absoluto e imperturbável silêncio que domina a vida das aldeias e que nenhum ruído urbano consegue compreender. Não é ausência de som. É presença de alma. É o som do vento a varrer as ruas desertas, o tilintar de um portão mal fechado, o coaxar distante de uma rã que insiste em viver no tanque. É um silêncio que fala, que sussurra, que nos obriga a ouvir-nos por dentro. E quando se ouve o próprio coração…, é sinal de que se está de volta. Voltar ao Alentejo é também reencontrar os rituais de amizade. Aqui, o tempo mede-se pelo número de cadeiras à volta da mesa. Cada visita é um pretexto, cada garrafa aberta um símbolo de fidelidade à terra e aos seus. As conversas demoram-se, repetem-se, enchem-se de silêncios cúmplices. As gargalhadas misturam-se com as migalhas do pão e as migalhas das memórias. Há um saber antigo em cada gesto, uma cortesia sem cerimónia, um respeito que não precisa de palavras.
E claro, as intermináveis e assustadoras rodadas de minis. Esse troféu comemorativo alentejano que, entretanto, os urbanos também levaram para as suas vidas, mas sem a classe dos daqui. Porque um alentejano segura sempre a mini ao peito, como quem ampara um segredo, e canta. Canta em coro, com o coração a pulsar de ternura. Canta para espantar a saudade, ou talvez para lhe dar guarida.
À noite, quando o calor se recolhe e a lua acende o caminho, as aldeias respiram uma calma quase sagrada. É a “praia dos alentejanos”, como lhe chamamos, esse ritual antigo de se sentar à porta, ao sereno, a ver passar a pouca vida que resta nas ruas. Os velhos contam histórias que já ninguém ouve, os cães ladram a fantasmas conhecidos e há sempre alguém que comenta o tempo, como se o tempo ainda fosse coisa que se pudesse dominar. E é nesse instante, nesse compasso entre o silêncio e a memória, entre a brisa morna e o cheiro da terra, que se percebe o que é, de verdade, regressar a casa. Não é apenas voltar ao lugar onde nascemos. É voltar a ser quem éramos antes de partir. É reencontrar o eixo que o mundo moderno nos roubou. É, por um breve momento, sentir que tudo o que fomos, somos e seremos cabe na sombra daquela torre altaneira, a mesma que, desde sempre, nos aponta o caminho de volta ao coração.

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