Tenho no espólio da memória, em pedestal de destaque, alguns estaminés de “comes & bebes” que me marcaram pela invulgar personalidade dos seus proprietários.
Assim a talhe de foice recordo (com saudade) alguns deles. O Luís Pardal da taberna “A Cavalariça” em Entradas, com as suas mirabolantes tiradas. A (recentemente falecida) Mariana Maria, da Estação de Ourique, com a sua estonteante estória de vida, ou ainda o meu amigo Manolo, do bar “La Moncloa” em Tenerife. Manolo, era um assumido franquista que tinha a particularidade do seu estabelecimento fechar às 40.000 pesetas de caixa e não à hora que determinava o encerramento.
Agora, nesta galeria de improváveis heróis, tenho uma nova protagonista. Chama-se Lilita e é, a par do seu marido, proprietária do “Café Correia”, em Vila do Bispo, há mais de 50 anos.
Já ouvira falar desta instituição gastronómica. A fama que a precedia indiciava ser casa de grande movimento, tanto mais que uma das estórias que dela me contaram tinha a ver com o facto de não aceitar reservas.
Quando aí chegamos para almoçar (já passava das 13 horas!) estranhei o facto de não haver qualquer cliente no interior e mesmo as luzes estarem apagadas.
A senhora que nos atendeu, vinda lá de penumbra da história, tinha na rispidez da resposta a sua imagem de marca.
À pergunta se o estabelecimento estava aberto, logo nos devolveu – Se estão cá dentro acham que está fechado?
Neste primeiro embate, julguei por momentos estar no sítio errado. Como na rua existem outros restaurantes, remirei pelo canto do olho o anúncio exterior que confirmava estar no “Café Correia”. Era ali. Mas, a bota não batia com a perdigota. Os pergaminhos que o precediam não estavam de acordo com a situação vivida.
Lilita, mulher franzina de provecta idade, com passinhos de gueixa e movimentos rotineiramente lentos, depois de timidamente acedermos (por minha insistência) a ficar para almoçar, fez questão de nos dizer que devíamos primeiro consultar o cardápio e só depois nos sentarmos.
Fiquei com a pulga atrás da orelha. O que quereria dizer a mulher com tão inusitada sugestão?
Para criar alguma ligação com a senhora, disse-lhe vir recomendado pelo seu irmão (que conheço de verdade), que a rotulara como excelente cozinheira.
– O senhor é um mentiroso. – Ripostou aquela migalha de gente com pelo na venta e pronta réplica na ponta da língua.
Engoli em seco. Terei mesmo gelado por momentos. Lilita, de dedo em riste e ar vitorioso, remira-me e conclui: – O meu irmão nunca poderia dizer isso. Sabe porquê? – e sem se deter – Porque quem cozinha é o meu marido!
E eu, petrificado, terei perdido uma excelente oportunidade para estar calado.
Não seguimos a sugestão da diligente senhora e sentámo-nos à mesa sem ter lido antes o menu, conforme nos sugerira.
Passados alguns minutos, e já com o couvert na mesa, alguém aventa que nos devíamos ir embora.
Quando a senhora aparece e lhe comunico a decisão, esta atirou com uma espécie de desagrado e ao mesmo tempo de sorriso vitorioso: – Eu não vos disse para lerem primeiro o menu? É que já ando nisto há mais de 50 anos e já conheço muito bem as pessoas.
Não sei se por vergonha, se para a contrariar, decidimos ficar. Eu queria tanto provar as especialidades da casa, como ouvir de viva voz as estórias que aí me levaram.
Escolhemos lulas e borrego para almoçar. Enquanto o chef Correia, seu marido, lá na cozinha esgrimia argumentos culinários entre tachos e panelas, Lilita (agora já mais amistosa) relatou-nos alguns desses episódios que a conduzem directamente ao pedestal por onde comecei esta crónica.
– Já estou aqui com o meu marido há mais de 50 anos. Estes, que a terra há de comer, já viram de tudo. Olhe, o António Guterres, quando era primeiro-ministro, só conseguiu almoçar na minha casa lá para terceira ou quarta-vez. Hoje, o secretário-geral da ONU (para além de continuar cliente da casa e militante das lulas do chef Correia), é nosso amigo. Noutra ocasião, ligaram para reservar dizendo que era da parte do Presidente Jorge Sampaio (que andava em presidência aberta pela região). Respondi-lhe que não aceitava reservas nem do cliente mais humilde, nem do mais importante. – e sem se deter – Por isso o Presidente Sampaio não veio à minha casa. E já agora deixe-me dizer que, em agosto não vale a pena pôr cá os pés, porque nós fechamos para férias. Isso mesmo! Fechamos desde há anos no mês da confusão. Sabe! Nós já não temos idade para confusões. Agora já não queremos clientes. Apenas queremos amigos. – Concluiu enquanto se afastava para receber novos clientes e repetir a mesma ladainha.
Passeando os olhos pelas paredes do estabelecimento, reparo num canto onde estão emoldurados os diplomas, recortes de jornais e críticas de reputados gastrónomos que, no seu eloquente verbo, tecem loas à verdade gastronómica deste singular estabelecimento.
Apenas provámos as lulas recheadas que, tal como o borrego, eram servidas em pequenos tachos de alumínio.
Eu que nem gosto de borrego, obriguei-me a provar a iguaria e não desgostar já é um sinal de que estava delicioso. Agora as lulas ainda me navega no palato a alquimia alcançada pelo mestre cozinheiro.
Fiquei com muita vontade de regressar ao “Café Correia”. De lhe provar as outras iguarias (aquelas que demoram cerca de uma hora a confecionar e fazem levantar da mesa comensais apressados), e de esgravatar nas estórias que Lilita tem para partilhar. Assim ela me aceite como “amigo” da casa.
O autor utiliza o
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