Barrancos

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Miguel Rego

arqueólogo

Há “lições” difíceis de compreender. De assimilar. Para mais quando a História impõe que as águas corram naquele que é o leito mais natural das coisas, apenas interrompido aqui e ali por grandes quedas de água. Usando a linguagem comum, nas revoluções, nos cortes radicais que tem o devir histórico. E a História que se escreve é sempre a dos mais fortes. Dos influentes. Dos mais ousados. Daqueles que têm sempre à mão os instrumentos com que ela se faz. Mas desafiar essa História é uma regra que nos obriga a dar voz à memória, na imensidão de silêncios e vazios que preenchem as muitas lacunas que fazem o tempo histórico. E por isso, senhor director, não posso deixar de discordar já, antes que passe mais tempo, e vir aqui dizer que o senhor José Manuel Durão nunca poderá ter no seu curriculo a legalização da corrida tradicional de Barrancos. Porque estava lá, na flor do acaso? Não chega. Não responde à História esse acaso. Nem muito mais ou menos. Sei onde quer chegar e compreendo perfeitamente a abordagem. E que de facto responde ao registo factual. Mas não é suficiente. Esta foi daquelas batalhas em que o David engoliu o Golias de uma forma inteligente, intensa e perseverantemente corajosa, sem ser importante compreender o “como”. No seu currículo poucos se podem dar ao luxo de estar do lado dos vencedores nesta batalha, muito menos os fortes e influentes, independentemente dos cargos que ocupavam. Poucos podem dizer que e como se venceu a distracção inicial dos partidos nas incongruências aparelhistícas que os caracterizaram; a mudança de atitude do, na altura, Presidente da República; os “nims” e “sims” de muitos influentes senhores que criaram uma espécie de guerrilha urbana comparável a coisa nenhuma em Portugal; do vazio da lei portuguesa às banais interpretações de articulados legislativos vindos do Comité das Regiões que, em Portugal, ninguém reconhecia; uma certa urbano-depressão que considerava a festa inconciliável com o desenvolvimento técnico-científico; uma certa apropriação marialvista que, em determinado momento, pôs em causa a defesa das touradas tradicionais de Barrancos. Venceu-se. Ponto final. As festas de Barrancos, na sua genuína especificidade, apesar de muitos aproveitamentos, só poderão aparecer no currículo das gentes da terra. E pouco mais. A coragem daqueles moços das Comissões de Festas; os comportamentos irrepreensíveis e a sensatez daquela população perante a pressão da comunicação social e do poder militar; a glosa das cartas anónimas e os sorrisos perante as ameaças de bomba; a verticalidade de um advogado da terra impassível perante os mais assanhados tubarões da lei; o inteligente diálogo do poder local com os mil poderes que em torno da festa se levantaram… Não senhor director. O senhor José Manuel Durão não estava lá e a vitória da “festa” não cai de bandeja no currículo de qualquer um. Pelos menos enquanto houver gente com memória.

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