Avô Montes

Napoleão Mira

Escritor

Foi a 3 de abril de 1935 que ficou registado em fotografia o momento que congelou os participantes desta cerimónia. Já nenhum está entre nós. Cumpriram o seu percurso terreno. Bom é saber que tiveram vidas de que nos podemos orgulhar. Íntegras e verticais. Suadas e honradas. Longas e calejadas. Como se estes adjetivos fossem uma forma de código genético que herdámos, carregamos e cuja obrigação é transmiti-lo.
O local é o Monte das Pestanas, nas imediações de Entradas. O evento terá sido um casamento, provavelmente de uma das filhas (tia Mariana, quiçá!) de uma prole de 11 rebentos. O pastor deste rebanho chamava-se António Silvestre, mais conhecido por Ti Montes, um homem austero mas competente. Capaz de criar 11 filhos sem que a fartura fosse em demasia, nem a fome uma ameaça. Ter tantos filhos há 100 anos não era tarefa fácil. Sem qualquer proteção social, a grande riqueza era o número de braços disponíveis para trabalhar, o que, no caso, eram bastantes.
Na casa de alguns dos Gonçalves (descendentes do avô Montes) existem esta e outras fotografias tiradas nesse distante 3 de abril de 1935, sendo esta preciosidade – qual peça arqueológica –, onde quem se interessar consegue mergulhar e reviver as histórias nela contidas.
A mim, tem-me perseguido grande parte da vida. Ocasionalmente, quando com ela me deparo, fico ali espreitando os detalhes ou perscrutando os semblantes. Aumento com a lente os rostos em busca de estados de alma. Pretendo com a ampliação descortinar-lhes que espírito os invadia naquele longínquo dia de primavera. Consigo, pelo ar imperial, aferir a postura de líder desse meu antepassado através do local central onde se posicionou, mas também pelo soberbo par de “suíças” que ostenta e que, só por si, impõem respeito. Ao lado esquerdo, está a sua mulher e minha bisavó, Maria Bárbara, com um ar distante e ao mesmo tempo submisso. Atrás e dos lados, os oito filhos homens, qual Guarda Pretoriana em dia de celebração. À frente, filhas, netos, genro e noras compõem o ramalhete da solene ocasião. Como estão todos vestidos de “grave”, acentuam-se-me as suspeitas de que assim estarão porque a circunstância o exigia.
Até que, um dia, resolvi reviver o espírito desse momento. Foi seguramente há mais de 20 anos. Era uma dessas manhãs frescas e primaveris em que a campina alentejana se atapeta de flores silvestres multicores. Desafiei o meu pai (que na foto é o menino que está sentado ao colo do seu) a dar uma volta pelo campo e, sem lhe dizer onde íamos, dirigi-me para o Monte das Pestanas.
O meu velhote, tinha por esta propriedade agrícola – onde o avô Montes era feitor – grande apreço, tendo mesmo aí passado dos melhores tempos da sua vida. Parei no largo fronteiro à entrada. Estava deslumbrado e ao mesmo tempo desapontado. No Monte, ou no que dele restava, imperava o silêncio. Há muito que não pisava aquele chão. Quando desceu, senti que se transportava a outras latitudes temporais. E sem se conter, sorria e chorava. Chorava e sorria. Foi sentar-se pela primeira vez no famoso banco da filha do patrão. Uma peça de cimento forrada a azulejos onde se sentava pai e filha a contemplar a elevação atrás da ribeira onde o sol se punha. Esse assento estava completamente vedado a toda a criadagem e seus familiares. Tal fez com que o meu pai invocasse naquela ocasião o nome do proprietário e o desafiasse (agora!) a retirá-lo de lá. Era de novo criança. Mostrei-lhe a fotografia que retirei do envelope. Rejubilou! Rememorar o momento naquele preciso local, fizera-lhe palpitar o coração e marejar os olhos. Eram fortíssimas emoções para guardar no melhor recanto da memória.
Conduziu-me então à parede onde esse instante foi imortalizado e até onde, se fechar os olhos, consigo viajar. Através deste truque de mágica, dou por mim a divagar no tempo e, de alguma forma, a conviver com esses antepassados que hoje inspiram este escrito.
Posteriormente, como forma de tributo, utilizei esta foto como capa do trabalho discográfico – “Entre(tanto)” –, com que o meu filho Samuel debutou na cena musical, e que, nos tempos que correm, é um raro objeto de coleção. Curiosamente, a mim, ainda hoje (em homenagem a esse avô), um par de velhos Entradenses continua a chamar-me de “Carinha de Feitor”, alcunha que se me colou desde a infância e, pelos vistos, não totalmente esquecida.
Presumo que se tenha chegado ao apelido Gonçalves através de algum antepassado chamado Gonçalo, já que este patronímico nos remete para “filho de”. Sendo que as gerações posteriores o utilizaram por regra e por lei, como apelido geracional.
Isto para dizer que, se calhar por causa deste retrato, por um desejo insondável que determina o comportamento humano ou mesmo pelos dois, recentemente, juntaram-se os descendentes possíveis destes Gonçalves para celebrarem essa orgulhosa consanguinidade, essa herança genética, consubstanciada numa fotografia que, passados quase 90 anos, pelo menos a mim, ainda me comove.

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