As rugas do desejo

Sexta-feira, 3 Dezembro, 2021

Vitor Encarnação

Escritor

Só já se lembra da pequena discussão familiar em torno do nome. Lar ou Casa de Repouso? A ele tanto se lhe dava o título, pois como não se sentia bem em lado nenhum, qualquer coisa lhe servia. Desde que pudesse fumar um cigarro.
Quando a carta de admissão chegou, e a filha, lavada em lágrimas, lhe disse que o iam deixar lá no dia seguinte, ele não se sentiu nem bem nem mal. Apenas encolheu os ombros. Não deixaria nunca que os olhos ou as mãos o traíssem.
Foi de certeza por o pai não mostrar tristeza na hora da despedida que, ironicamente, se instalou um certo mal-estar em toda a família.
Mal sabiam eles, gente ainda jovem, quantas vezes na vida é que um homem tem de se despedir! E às vezes até perder para sempre, sem sequer ter oportunidade de dizer adeus! Quantas vezes tem de abandonar o que gosta e voltar as costas! E ir embora.
E esquecer. E repousar. Que são outras formas de morrer.
Nesse dia, no outono do tempo e da vida, entrou na instituição apenas com uma pequena mala. Anos a fio a desbravar mundo, a semear, a colher, a amar uma mulher, a fazer uma casa e nela fazer filhos, a sentir o coração da terra a bater-lhe no peito, e agora a sua existência toda cabe toda numa pequena mala. Portanto, por favor, não lhe chamemos mala de viagem. Que essas levam o entusiasmo e o apetite pela vida toda lá dentro e estão sempre abertas, prontas. Esta que ele traz, pendurada no desânimo, só tem roupa interior e irá ser fechada e guardada para sempre debaixo da cama. E ele dentro da cama.
O quarto não dá para a rua. Não pode libertar o horizonte, desatar o nó dos olhos e pô-los a correr campos fora, como fazia dantes no tempo das melancias. A janela abre para um espécie de pátio, onde dois homens dormitam e um cacho de outros joga às cartas. Nunca aprendeu a jogar às cartas. Confundiu sempre os reis e os duques, não aprendeu nem vazas nem códigos de parceiros. Baralhava as mãos. Dava ao contrário.
Por causa dessa incapacidade de matar o tempo com os dedos, talvez fosse escolher as damas de tabuleiro e o silêncio quente do sol a aquecer-lhe as pantufas. Iria uma vez por outra ao bar beber um café e se calhasse meteria conversa com quem estivesse, e contaria histórias que nunca aconteceram, porque essas são sempre as histórias mais bonitas.
Talvez até morresse entretanto, antes de um filho que está lá para Lisboa o viesse visitar. Dá consigo a pensar que gostaria de morrer de noite, a sonhar. E a morte viria como um sonho bom, batia à porta, pode entrar, e só depois ela entrava de mansinho, sem dramas, sem gritos nos ossos, sem dores na carne, sem sofrimento. Vinha, punha-lhe um manto de veludo por cima das costas e levava-o para o céu onde a morte mora. E de manhã lá estaria o corpo sem vida, perfeitamente aconchegado. Nem haveria de parecer que a morte ali tinha passado.
E não passou. Quem passou por ele no corredor foi uma
Mulher que entrou de mansinho e com os olhos ateou-lhe uma chama no peito.
Há muito tempo que o tempo não parava! Há muito tempo que o coração não batia sem ser para não parar!
Aqui levantam-se várias questões: por quanto tempo guardam as cinzas o fogo? Por quanto tempo as mantêm no frio do chão e as protegem dos anos que passam? Onde ficam as brasas escondidas à espera? Será que todos os homens as têm como se fossem memórias incandescentes, como se fossem desejos em coma profundo, ligados à ténue máquina da paixão? E será caso que de repente, nos confins da vida, na última idade, à beira de um buraco de terra, encostado às tábuas de um caixão, pode ainda surgir uma mulher, por entre cajados, cadeiras de rodas, pensos, frascos de soro e algálias, como se surgisse num salão de baile, numa praia, num campo de trigo, num altar de igreja, no leito da primeira noite?
Talvez ela não tenha ainda reparado nele. É melhor que não, pois ele tem de ir tomar banho, fazer a barba, a pôr um lenço na lapela, pentear o cabelo para trás – talvez brilhantina – e reaprender a sorrir porque as mulheres gostam de homens felizes.
Acordam como se estivessem deitados ao lado um do outro, tomam o pequeno-almoço juntos, sentam-se de olhos unidos, complementam as conversas, jogam às damas sem tabuleiro, ela borda-lhe um lenço. E depois, à noite, lado a lado, veem as telenovelas, provam os beijos, sentem os lábios, dão as mãos, percorrem os corpos lisos e rijos, sem se tocarem.
Inquietam-se de coisas boas. De aventuras de quando eram novos, de bolinhos, de chá e de olhares. Recuperam anos numa palavra mais doce, num gesto mais sublime.
Já chegou aos ouvidos da administração esta pouca-vergonha.
Amanhã virão cá os filhos dela e dele (até o de Lisboa) para pôr fim a este escândalo. Uma instituição que se preze não pode admitir este tipo de perversões. Ralam-se os administradores. Envergonham-se os descendentes.
Riem-se as auxiliares. (Mas há uma que deixa cair uma lágrima de ternura).
São separados. Impedem-nos de se verem. Já nem almoçam juntos.
Sem flor na lapela. Um lenço que ficou por bordar.
Começam a morrer.
Ele e Ela.
Quando se deitam, o escuro é uma ponte por onde uma paixão curvada caminha lentamente.

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