“Ó Tozinho, traga umas bolas de Berlim, para o Diogo.”
Este diálogo passa-se durante o pequeno-almoço de um hotel algarvio, onde este ano passei férias. Passados poucos segundos, o Tózinho, pai do Diogo, miúdo de dois a três anos, chegava à mesa com um prato cheio de bolas, que estava bem de ver, nunca comeria todas. Pouco depois, e noutra mesa ao lado, um miúdo berrava por “bolas de Berlim”. O pai, depois de ir ao<i> buffet</i>, dizia ao filho (Bernardo) que já não havia mais. Tinham acabado. Nem para ele, nem para a mana Mariana, que também pedia bolos..
Logo a seguir o pequeno Diogo foge da mesa para a beira da piscina e os pais pressurosos vão atrás dele, não fosse o miúdo cair à agua. Para trás, ficava uma mesa vaga de pessoas, mas cheia de comida e de bolas de Berlim, que outros queriam ter comido, mas ali estavam a estragar-se impunemente.
Assisti a isto tudo logo no início das minhas férias, num hotel na zona do Ancão, onde a rapaziada do “Jet Dois” lisboeta gosta de passar férias. Os filhos desta gente são todos Diogos, Bernardos e Marianas. As Vanessas já são filhas das Marias Albertinas. E o quadro lamentável que descrevi retrata, na perfeição, o egoísmo que comanda hoje os valores sociais, o desprezo de cada um pelos outros e o desperdício serôdio dos novos ricos que retiram aos outros o que não lhes faz falta.
Eu que trabalho num hospital percebi naquela manhã a necessidade das taxas moderadoras como um mal necessário, para evitar os abusos de alguns em prejuízo de todos. Os portugueses são definitivamente assim. Na estrada, nas filas de automóveis, nas filas do cinema, nos empregos, em qualquer situação, só não dão o golpe se não puderem. Por isso, em Portugal seria impensável, como acontece nalguns países nórdicos, pôr à venda os jornais na rua, sem vendedor, e quem passa tira o jornal, deixando em troca o dinheiro. Se o Tózinho tivesse que pagar as bolas de Berlim para o menino Diogo, comprava só uma, ou não comprava nenhuma, dando-lhe em troca um tabefe. Não estragava com certeza meia dúzia de bolos com aquele desprezo imperial de novo rico, a roçar a parolice serôdia dos Berardos ou Filipes Vieiras.
E quando os nossos economistas falam do nosso atraso económico em relação à Europa, eu julgo que é mais importante o atraso cultural, que é a base de todos os atrasos, e explica todas estas patetices do quotidiano deste país, onde os premiados são esta gente das bolas de Berlim, que nada valem em termos culturais e humanos, mas que certamente cheiram o rabo dos chefes quando faz falta e são compensados com regalias e férias que o comum dos portugueses não pode ter. Em Portugal admira-se mais a cultura televisiva e das revistas cor-de-rosa do que a cultura académica ou literária.
Por isso me admiro que a ministra da Cultura do país onde Torga nasceu não tivesse tido agenda para comparecer ao seu centenário. O que é simplesmente lamentável e deveria ter sido considerado intolerável pelo primeiro ministro.
Eu tive a sorte e o privilégio de assistir a uma das últimas conversas que o dr. Adolfo Rocha concedeu a um jornalista (ele tinha aversão às entrevistas) e aperceber-me da dimensão humana e cultural do poeta de S.Martinho da Anta, autor da extraordinária obra literária sobre os dias da <b><iCriação do Mundo</i></b>, dos <b><i>Contos da Montanha</i></b>, dos <b><i>Bichos</i></b>, e desse conto fabuloso que é o <b><i>Senhor Ventura</i></b>. Torga não era filiado em nenhum partido, mas deixava transparecer a sua simpatia pela maioria que o povo português deu ao Partido Socialista nas primeiras eleições legislativas após o 25 de Abril. Maioria que veio contrariar a intensa propaganda e controlo dos media, que na altura o Partido Comunista impunha ao país. Torga entendia, na sua sabedoria simples mas esmagadora, que os humildes deste país sabem o que querem, são a maioria e a sua primeira expressão popular, foi a identificação com o PS. Por isso, o Governo tinha de estar presente no seu centenário e a agenda de um ministro que conheça a essência do Partido Socialista, não pode ter nada mais importante para fazer que uma homenagem a Torga. Por isso, e como dizia o Jorge Coelho, o PS tem de ter cuidado com alguns independentes, talvez mais oportunistas e mais senhores Venturas que realmente independentes. Eu penso, como certamente muitos portugueses que gostam de ler os autores nacionais com raízes verdadeiramente populares, que Torga merecia ter sido o Nobel Português. Mas com Nobel ou sem Nobel, vamos continuar a ler os vários dias da <b><i>Criação do Mundo </i></b>e perpetuar a sua obra, mesmo que algumas intelectuais menores não tenham agenda para o nosso Torga.
E também morreu o maior tenor de todos os tempos. De seu nome Luciano Pavarotti.
Nascido em Modena, Pavarotti tinha, em meu entendor, uma voz mais cheia e consistente que o inesquecível Enrico Caruso. As suas interpretações da música de Giuseppe Verdi, Giacomo Puccini e outros compositores, e a actuação dos três tenores em vários eventos de carácter mundial, ajudaram a trazer até nós o gosto pela ópera A simplicidade de Pavarotti e a sua preocupação pelas causas sociais, fizeram dele uma personalidade que, mesmo morta, vai ficar perto de nós, quando não pelos registos magnéticos da sua voz, que vamos continuar a ouvir uma, duas e tantas vezes.
Comprendam que num artigo onde recordo Torga e Pavarotti não queira falar hoje das últimas desventuras de figuras menores do nosso quotidiano, que afastam o nosso país daquele nível mínimo cultural em que gostava de o ver. Como são o dr. Marques Mendes, o sr. Luís Filipe Vieira, o dr Alberto João, o sr.Scolari e outros.
Este país se calhar até mereceu o estranho casal McCann. Depois dos “BigBrothers”, do processo Casa Pia, e dos “apitos dourados” e “encarnados”, só nos faltavam nove ingleses que deixam filhos menores a dormir sozinhos em casa e vão para um jantar regado com 14 garrafas de vinho. Repito, e segundo a imprensa, nove pessoas beberam 14 garrafas de vinho. Foi por isso mais que justo o pecúlio de vários milhares de libras que o casal reuniu para ajudar às despesas. Também já vi figuras públicas na televisão a pedir dinheiro para as crianças de Angola. Aquele país onde vários oficiais do MPLA já vieram citados na revista “Forbes” como dos mais ricos do mundo. Um país que até tem petróleo e diamantes. Nós pagamos a gasolina e, como sempre, damos esmolas aos outros.
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