Além das palavras

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Paulo Geraldo

professor de língua portuguesa

As coisas mais importantes não se aprendem verdadeiramente nos livros, nem nas aulas, nem em conferências, nem em sermões.
Passam de pessoa para pessoa através de gestos, de comportamentos concretos. Através de exemplos de vida.
A única forma de um pai ensinar um filho a ser honesto consiste em ele mesmo ser honesto, custe o que custar, em todas as circunstâncias, desprezando todas essas maneiras fáceis – e falsas – de subir na vida ou de resolver problemas delicados.
Se assim não for, bem pode esforçar-se em dar ao filho enormes sermões sobre essa virtude…
Mas se o pai for honesto, não precisará sequer de usar as palavras.
Estamos todos fartos de palavras. As palavras são um revestimento estéril, se não corresponderem a um fundo verdadeiro. E têm sido usadas frequentemente por muitas pessoas para enganar, para fingir, para alcançar ilicitamente resultados.
Entre essas coisas importantíssimas que não se aprendem por meio de palavras, encontram-se as virtudes e os valores.
E entre eles está esse tão raro da hospitalidade.
Eu aprendi a hospitalidade em Chãos, ali pertinho de Alcobertas, numa noite de Inverno de há muitos anos.
Tinha saído de Lisboa com um grupo de talvez vinte alunos meus de 12/13 anos. Devíamos atravessar a Serra dos Candeeiros e chegar a Alcanede (parece-me que era Alcanede), onde tínhamos uma casa à nossa espera. Mas apanhámos um anoitecer daqueles em que um homem não devia sair de casa. Chuva, vento, nevoeiro. A verdade é que nos perdemos e vagueámos desastradamente pela serra. Já era muito tarde quando avistámos umas luzes lá em baixo e, depois de descermos aos tropeções, chegámos a um lugar que não fazia parte do percurso previsto: era Chãos.
Algumas casas perdidas na imensidão da serra.
Uma olhadela rápida para o mapa fez-nos compreender que estávamos ainda muito longe do nosso destino. Era impossível, no estado em que nos encontrávamos, chegar a Alcanede antes de ser muito de madrugada. E isto no caso de que conseguíssemos chegar.
Houve então uma pessoa que nos ajudou, metendo-nos numa camioneta e levando até à desejada casa – até ao calor de uma lareira e ao conforto de poder estender o corpo – aquele grupo dorido e encharcado.
Era uma pessoa igual a todas as outras, com um nome vulgar, semelhante a muitos outros, habitante de um daqueles lugares que não vem nos grandes mapas. Mas vivia a hospitalidade e, por isso, ensinava-a.
Eu aprendi a hospitalidade em Chãos. E os jovens que iam comigo também a aprenderam. Ficaram felizes. Fizeram a viagem a cantar, sentados na caixa aberta da camioneta, esquecidos da chuva, do frio e das bolhas nos pés.
O mundo tinha-se tornado mais belo. Já não havia nuvens nenhumas…
Aqueles jovens são agora médicos, engenheiros, advogados… E aprenderam a hospitalidade em Chãos.
Tenho a certeza de que procuram pô-la um pouco em prática, de que não se esqueceram da lição daquela noite, embora talvez já não se lembrem de onde nem de quando nem de quem a aprenderam.
A hospitalidade de uma pessoa multiplicou-se, portanto, por vinte. E, por isso, o mundo ficou um pouco melhor: vinte vezes melhor.
Felizmente, o bem é algo que se espalha com grande facilidade: com maior facilidade que o mal, o que é um bom motivo para continuarmos optimistas.
Quarenta televisões competindo por audiências sem olhar a meios, oitocentas revistas pornográficas, duzentos jornais tendenciosos, mil homens mal intencionados, centenas de políticos corruptos não podem, nem todos juntos, realizar mal em quantidade suficiente para contrariar o bem feito por um único homem bom.
Depois dessa noite, voltei ainda muitas vezes a Chãos e aprendi outras lições semelhantes a esta. Poderia contá-las todas, uma a uma, mas não o vou fazer.
O meu amigo Manuel Pedro há-de corar se por acaso chegar a ler este texto, e essa é uma boa razão para que não continue a escrever . Ele e o Ramiro e outros bons mestres que há por aí.
Ensinam com naturalidade porque vivem aquilo que ensinam: não pensam que estão a fazer algo de extraordinário.
Não acreditariam – haviam de rir-se – se lhes dissessem que estão a tornar o mundo melhor e mais belo, mas é isso que acontece.

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