Ainda não há muito tempo, caminhar surpreendia. “Que queria eu dali?”, perguntavam-me num misto de curiosidade e receio. “Seguir”, respondia, porque era a verdade e era simples. Por vezes à distância, sem eu os ver, sabia que me viam eles a mim e aos cães que me ladravam, sem perigo, claro, que os cães dos pastores são prodígios de diligência atenta, aos donos e aos rebanhos. A pé e sozinho, seguia, e raramente encontrava alguém nos meus caminhos, apenas a caminhar ali como eu. Quando isso acontecia, quase certo eram estrangeiros, de cabelos já brancos, bem equipados e com boa técnica de marcha.
Há uns anos isto mudou. A duas e três, palradoras e afoitas, com a sua garrafinha de água na mão e nos caminhos mais perto das casas, adivinhava-se nelas a recomendação dos médicos às mulheres naquela idade: era bom para os ossos, para as tensões arteriais, para o peso e para os ânimos. Os caminhos mais curtos tinham agora mais gente.
Por vezes – pesadelo! – também lá aparecia a brigada do “todo o terreno”, cheia de lama, barulho e tubos de escape, radiante na fantasia bélica do seu absurdo brinquedo miliciano, a estragar tudo. “Aventura”? “Natureza”? “Turismo”? Não, nem tudo é relativo; não, nem tudo é um “produto”.
Agora, deparo nalguns destes caminhos com umas estacas de marcação que dizem: “rota vicentina”. Fui ver, e só espero que este projecto vença como o seu nome indica. São Vicente é bom patrono para esta ideia. Não tanto pelos lugares que a rota atravessa, já que as relíquias do santo terão ido para Lisboa no séc. XII por mar, mas pelas ideias que associa.
O corpo do santo, martirizado durante as perseguições de Diocleciano aos cristãos no séc. IV, mesmo lançado ao mar e depois de despedaçado, regressou sempre, protegido por corvos, para junto dos seus fiéis seguidores. Mais tarde, os seus ossos terão sido levados em segredo para uma “igreja do corvo” no alto do promontório que é hoje o cabo de S. Vicente, de onde D. Afonso Henriques os terá mandado buscar para, com eles consagrar a recém-conquistada Lisboa e, de caminho, julgo, resolver um acerto diplomático com os cruzados e com a população vencida da cidade.
A imagem de dois corvos, que a lenda diz não mais se afastarem das relíquias do santo, eram decerto familiares aos guerreiros nórdicos que combateram no cerco de Lisboa, pois o seu deus da guerra, Odin, tem por atributo dois corvos sobre os ombros. E são corvos também que servem à representação do trânsito entre vida e morte nas religiões de fundo oriental mediterrânico, familiares aos moçárabes de Lisboa naquele século de cruzadas.
Um feixe de caminhos pedestres, postos sob a protecção de um santo que une no seu culto a paz que sucede à guerra, a união que prevalece na diferença e a luz que galga as trevas e a morte? No meio de paisagens sumptuosas, na calma dos caminhos, a relembrar a beleza profunda do mundo e o encontro com os outros na comum cadência pedestre? Só pode ser o projecto perfeito.
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