A procissão e o discurso

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Onofre Varela

jornalista / cartunista

No dia 15 de Agosto, feriado religioso nacional, fui visitar amigos emigrados que gozavam férias em Esposende. No calendário católico aquele dia de estio tem um significado especial e a comunidade religiosa local estava na rua, tomando lugar na avenida central à espera da procissão: um cortejo religioso-folclórico encenando quadros de fé que, naquele caso, tinha a missão de lembrar as sete santas que a Igreja Católica celébra naquele dia. (Sete santas… que são uma só.
Trata-se de Maria, mãe de Jesus, nas versões travestidas de Sra. da Conceição, Sra. das Dores, Sra. da Assumpção, Sra. de Fátima, Sra. dos Aflitos, Sra. da Saúde e Coração de Maria).
Acomodei-me na beira do passeio da avenida e apreciei a procissão. Foi uma boa representação cénica medieval, com crianças vestidas à maneira de figuras bíblicas, principalmente lembrando Maria — a homenageada —, desde a meninice e a juventude até à anunciação da sua gravidês pelo anjo. Também lá estava representada a odisseia de Jesus Cristo com as dramáticas etapas finais da sua vida: perseguição, prisão, tortura, flagelação e morte. Cenas sempre acompanhadas pela figura representativa de Maria no seu extremo sofrimento de observadora do martírio do filho. As cenas desta narrativa animada eram intercaladas pelos andores das sete santas e por vários porta-estandartes que seguravam pendões de seda artisticamente decorados com pinturas representando mártires, santos e anjos. A procissão terminava com o desfile de uma corporação de bombeiros exibindo luzidios machados, logo a seguir ao grupo das meninas de mini-saia rodando nas mãos um bastão ao som do toque da caixa, e fechava com a tradicional banda de música, o que para mim é sempre um excelente prémio.
O colorido desfile interrompeu-se num momento programado, quando o pálio que abrigava três sacerdotes se aproximou de um palanque, com microfone, montado ao fundo da avenida. Um dos padres subiu ao estrado para falar aos espectadores e, na circunstância, debitou um discurso apologético do sofrimento! Apontou o drama de Maria como exemplo a seguir por todas as mulheres, porque sofreu calada. Todas deveriam sofrer como ela, sem deixar sair queixume, e quem não tivesse a “sorte” da experiência de uma vida sofrida, não cumpriria o seu papel de mulher. Realçou o sofrimento como sendo o melhor passaporte para se cruzar a fronteira dos céus e viver plenamente a bem-aventurança da felicidade que Deus promete e dá a quem sofre privações e derrama sangue, suor e lágrimas, coleccionando imensos desgostos. Só assim a divindade se compadece das mulheres que cumprem o destino para que foram criadas: sofrer, sofrer, sofrer e sofrer!…
Presumo eu que aquele sacerdote que assim falou, e que desrespeitou todas as mulheres do mundo — começando pela sua própria mãe —, não acreditará nem numa só palavra das que disse, e o discurso limitava-se a cumprir uma tradição que tinha por alvo os habituais assistentes das missas locais e, se calhar, nem foi convenientemente ouvido, ou entendido, por aqueles a quem se destinava. Eu ouvi-o com toda a atenção, entendi-o, e por isso abri a boca de espanto! Não quero crer que um sacerdote jovem, vivendo no século XXI e na Europa Ocidental, acredite realmente no discurso do sofrimento e o profira com seriedade intelectual!
Uma das inúmeras verdades que, parece, os sacerdotes desconhecem (ou, pelo menos, aquele demonstrou desconhecer), é que ninguém nasce para sofrer! O nascimento é uma porta que se abre para uma vida que tem uma única missão a cumprir: ser vivida. O sofrimento e o seu contrário — a alegria e a felicidade — são elementos construtores da vida de cada um, quer se nasça macho ou fêmea, no norte ou no sul, a este ou oeste, rico ou pobre, e que todos nós experimentamos em circunstâncias diversas ao longo da vida, porque o humor é variável e a química cerebral tem a sua missão para cumprir. A vivência em sociedade organizada obedece a preceitos legais que pedem cumprimento, e cumpri-los é um acto político. Os responsáveis pelos governos têm a obrigação moral e estatutária de limitar ao mínimo possível o sofrimento dos cidadãos, e quando um povo sofre demasiadamente por motivos sociais é porque os poderes político e económico não sabem resolver os problemas de modo a diminuir o sofrimento dos povos e a aumentar os factos que induzem um sentimento de felicidade ou de bem estar. É para isso que os governos existem e que os cidadãos os elegem. E os males promovidos pela política só podem ser resolvidos pela mesma via.
Aceitando que haja uma vertente positiva na submissão ao sofrimento, ela só pode ser entendida como ganho de “endurance”, ao estilo dos exercícios das tropas dos Comandos, no sentido da preparação física e psicológica dos soldados para melhor suportarem e resolverem situações extremas. Mas não era esse o sofrimento vaticinado por aquele sacerdote. Ele referia-se ao “bem supremo” de mitigar desgostos na fé religiosa como fármaco atenuador da ansiedade e como caminho seguro para se chegar a Deus.
A terapia da fé pode ajudar em determinadas circunstâncias, porque é de ordem psicológica, e acredito que resulte no cérebro de uma pessoa que dedique toda a vida a uma causa religiosa, como uma freira que vive em clausura com a convicção de que está a agradar a Deus, mas que todos os dias encontra o seu prato cheio e quentinho no refeitório do convento. Mas ao cidadão comum, que tem compromissos familiares e sociais, que tem contratos com a entidade empregadora e com os bancos, e quando a primeira não cumpre, não pode honrar os seus compromissos com os segundos, nem dar de comer aos filhos… essa fé não resolve coisa alguma definitivamente, e pode, até, manter ou piorar as causas do sofrimento pela passividade que comporta. O sádico apelo ao acto de sofrer para alcançar felicidades supremas após a morte devia ser repensado pelos bispos, pois é demasiadamente negativo para além de ser obscurantemente mentiroso.
Eu penso que com tal discurso a Igreja presta um péssimo serviço à sociedade, mantém a consciência da mulher num patamar muito baixo, ao estilo islamita — que deve submeter-se e renunciar à sua vida própria —, e encaminha os fiéis do credo para um beco de resoluções práticas impossíveis. Pregar o sofrimento e a resignação como virtude, é incutir um sentimento menor no espírito dos crentes. Um sentimento ao nível dos do ódio, inveja e da cobiça, que se exercem solitariamente e, suponho, também produzirão sofrimento a quem os pratica.
A não ser que os sacerdotes tenham uma outra intenção básica quando produzem tais discursos… que é a de semearem a ignorância, mantendo os crentes numa menoridade intelectual, para melhor colherem… o que me parece escandalosamente mau para ser verdade!

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