Sou guiado por cheiros. A minha memória é, acima de tudo, de matriz olfativa. Se de um postigo entreaberto, e lá do fundo do quintal, vier um cheirinho a carne frita, ervas nossas, açordas múltiplas, pão acabado de cozer ou tantos dos outros aromas que identificam a vida da aldeia, logo se me escancaram as portas da lembrança e me conduzem a momentos da vida em que aquele perfume esteve presente. Mais das vezes, revisitações da infância, local temporal onde devo ter sido bastante feliz.
Não sei se por necessidade de regressar a esse tempo, se por vício de que não me consigo livrar, ainda hoje dou comigo a percorrer as ruas da minha terra, assim à hora a que o sol viaja para outras paragens.
Deste modo, num assomo de clandestinidade, vou metendo o nariz em tudo o que é fresta ou postigo à procura desse nirvana olfativo, que busco desde que me conheço.
Tempos atrás, se calhar há mais de década e meia, ao fazer mais uma das minhas incursões odoríficas povo afora, segui um cheiro a louro que perfumava certa fritura. Coelho bravo, talvez! A pista olfativa conduziu-me a uma taberna centenária, que agora se chama A Cavalariça, entretanto convertida à restauração, mas que já teve outros nomes, regra geral, o das pessoas que a exploraram.
Era fim de semana, dia de sábado, para ser mais exato. As mesas estavam cheias de homens que desfiavam lamentos em forma de conversa.
O cheiro da tal fritura que vinha lá da cozinha inebriava-me os sentidos. Pedi um jarrinho de tinto, mais o respetivo petisco do dia e, sentado ao canto do balcão, por ali fiquei a admirar a paisagem sonora que se pressentia.
Os homens, à medida que chegavam, sacavam das suas navalhas e junto com elas saíam dos bolsos pedaços de conduto. De uma algibeira, saltava um queijinho curado, de outra, um pedaço de linguiça. Havia ainda quem trouxesse azeitonas, tomates, pepinos, pêros e outros mata-borrões. Isto porque o vinho, apesar de líquido, se bebido a seco é capaz de entornar os sentidos e borrar a opa!
Ali era a minha terra, o meu lugar. Aqueles homens, a minha gente. Muitos deles consanguíneos meus por remoto parentesco. Dei comigo a pensar!
Depois da conversa acabada e num momento em que o silêncio imperou, ouviu-se de uma mesa lá do canto uma voz cantarrista que debitava o ponto a preceito.
Toda a taberna emudeceu para a ouvir cantar. Assim que esta terminou, logo o alto lhe pegou. Quando o ressoar das vozes se fez ouvir, senti-me de novo transportado para essa região temporal com que comecei este escrito: a minha infância.
Aqui estou eu. Debaixo da mesma mesa de onde brotam as vozes dos homens que cantam lonjuras. Dos homens que tratam os horizontes por tu. Dos homens que celebram em uníssono o grito da terra. Dos homens que um dia quero imitar, embora ainda use calções de peitilho.
Apesar da minha pouca idade, há muito que jogo este jogo. Para além da perspetiva única, daqui debaixo, quando irrompe o trovão das vozes, parece que toda a terra estremece. Gosto de me sentir invisível e ao mesmo tempo aqui, no olho do furacão, no cerne da tempestade vocal.
Estou aqui debaixo da mesa grande e ao mesmo tempo ao canto do balcão. Posso sintonizar-me da maneira que mais me aprouver. No silêncio interior com que me protejo, sinto que me agrada esta espécie de estereofonia temporal.
Agora, aqui deste canto de onde — qual esponja! — sugo tudo o que à minha volta acontece, penso que foi o cante que despoletou o meu regresso à pátria transtagana.
Reflito nesse momento e revejo-o na memória como se de um filme se tratasse.
Se tivesse nome, chamar-se-ia “Sonho de Uma Noite de Verão”.
Sentado ao sereno, à porta de casa da minha tia Francisca, na Avenida de Nossa Senhora da Esperança, ouço ao longe uma espécie de murmúrio cantado, logo seguido de outra voz solitária que se eleva no silêncio da cálida noite. Quando o coro de vozes irrompe, sou invadido por uma certa e estranha melancolia, uma suave corrente elétrica de que não sei precisar a voltagem, um exato e raro sentimento de quem só quer eternizar aquele instante.
Resultado: abalei rua abaixo. À medida que me aproximava da venda onde o cante acontecia, maior era o frenesim que de mim se apoderava. Parecia mesmo que no meu peito corria à desfilada um cavalo selvagem em forma de coração. Aí chegado, e sem coragem para entrar, sentei-me num banco existente à porta do estabelecimento de modo a presenciar aquela sessão de cante improvisado.
Acendi um cigarro e segui na rota do fumo as estrofes cantadas pelos homens da minha terra. Foi nessa noite que morri pela segunda vez. A primeira, foi quando me arrancaram ao Alentejo, mas agora…. agora, a magia do cante tinha-se apoderado de mim.
Um arrepio percorreu-me a espinha e devolveu-me o pensamento e ação à Cavalariça onde entretanto juntei a minha voz à dos outros convivas.
Entrei assim numa espécie de ritual, numa cerimónia repleta de preceitos só entendível aos que possuem no seu código genético uma determinada matriz. Um cromossoma comum. Uma certa e orgulhosa maneira de dizer:
Sou daqui!
A cantata vai ganhando proporções épicas. As vozes afinam-se pelo diapasão dos minúsculos copos de tinto que escorrem pelas apressadas gargantas das vozes vagarosas.
Canta-se um pouco de tudo, mas sobretudo o trabalho, a dureza quase esclavagista de uma labuta que ainda paira na memória de quem o canta. Mas também se canta o sonho, mormente em duas das modas que me levam ao estremecimento.
Uma fala na vontade de quem a canta, de um dia se ir sentar no círculo que leva à lua, para de seguida alguém ripostar com outra pérola do nosso repertório. Esta fala de uma águia que lá no alto vai voando de polo em polo, o que só por si denota a grandeza poética de quem a escreveu.
Estas são modas do ocaso, de fim de festa. São temas arrastados, pesados, cadenciados. Requerem muita noite de ensaio, muito copo de vinho e muito compasso respiratório. Este é um território onde só se aventuram os mais dotados, vocalmente falando.
Pela minha parte fico-me pela emoção de presenciar o momento.
Quando a noite se fez verdadeiramente noite, haviam ressoado pelas antiquíssimas paredes da velha taberna muitas das modas do nosso cancioneiro.
Depois da célebre — Vamos Nós Saindo — moda abaladiça que determina o fim da cantoria, na rua ainda entoavam algumas ébrias vozes que teimavam em perpetuar o momento.
No caminho que me devolve à realidade, carrego planura na alma. No silêncio da noite calada, apenas sinto o bater descompassado do coração e a estranha e nobre sensação de pertencer a um povo que para cantar tem necessariamente de se abraçar.
O cante está vivo e recomenda-se. Talvez já não se cante tão assiduamente de taberna em taberna como se cantava até há pouco tempo, até porque também esses locais de culto foram aos poucos desaparecendo. Uns por via da falência da vida ou do negócio, outros por exigências modernistas que teimam em impor legislação que não se coaduna com a dimensão da atividade. E assim, aos poucos, vão desaparecendo esses emblemáticos templos onde o vinho era rei e, o cante, imperador.