A dimensão das coisas

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Rui Sousa Santos

médico

A dimensão política das coisas tomou conta da vida nacional. As questões da educação (convém relembrar: reforma do ensino, avaliação dos professores, estatuto do aluno) assumiram um evidente estatuto político e como tal têm que ser equacionadas. Tudo o que assistimos nesta semana em que escrevo esta crónica o demonstra à evidência. Estamos perante um excelente case study do vale tudo em que se tenta transformar o legítimo combate político no nosso país.
Maria de Lurdes Rodrigues é uma mulher de coragem, que merece a minha admiração. Teve a coragem necessária para meter as mãos num lodaçal onde se entrecruzam interesses múltiplos, muitos dos quais poderão ter a ver com tudo menos com a qualidade do ensino básico e secundário em Portugal. O papel dos sindicatos, os horários e as funções dos professores nas escolas, o desenvolvimento das carreiras docentes, o modo como a escola vê o aluno no seu seio e o tipo de relação e de responsabilidade que assume perante ele, o modo como alunos problemáticos porque altamente vulneráveis são enquadrados pela instituição e pelo sistema de ensino, o papel do aluno na escola, constituem ingredientes de uma postura em causa sistematizada do conteúdo, problematicamente opaco, de um caldeirão que houve a coragem de destapar.
É que o tirar da tampa incomoda muita gente. A manifestação do fim de semana passado, com a aposta da chamada plataforma sindical em pôr na rua o maior número possível de pessoas, deve ser descodificada de modo inteligente. Wilhelm Reich, um psicólogo e teórico alemão que esteve em voga nos idos de Sessenta e Setenta, publicou um livrinho chamado <b><i>Psicologia de Massas do Fascismo </i></b>em que teorizou sobre os mecanismos de controlo de massas que levaram Adolf Hitler ao poder por via democrática e permitiram a construção do nazismo, um sistema essencialmente antidemocrático, a partir do interior do sistema democrático. A analogia não é pretendida, torne-se claro. Apenas alguns mecanismos são semelhantes. Pegue-se num alvo concreto – a ministra, pegue-se num facto isolado – a avaliação, e manipule-se uma horda ululante que necessita de deitar cá para fora frustrações, desgostos, desilusões, um sei lá o quê de coisas que nos perturbam nos tempos pouco fáceis que planetariamente decorrem. A receita resulta, certamente: manifestação de força de quem suporta os sindicatos, abertura e directos em todos os telejornais, abandalhamento da figura da ministra, gerar preocupações no Governo e nas forças que o suportam. Depois, os meninos. As manifestações dos meninos à porta das escolas, os ovos e os tomates atirados, os cadeados nos portões. Note-se que estamos a falar de escolas básicas, povoadas por crianças entre os dez e os quinze anos. Que nunca deveriam sair da escola durante os tempos lectivos. Que escolas são estas que se desresponsabilizam pelo que possa acontecer aos putos que venham para a rua manifestar-se contra o estatuto do aluno durante o horário escolar? Que sabem eles sobre esse mesmo estatuto? Que é que se está a fazer a estas crianças? Que lições é que lhe estão a dar? O facto de haver eleições legislativas no próximo ano justifica tudo? Quem paga os cadeados, os ovos, os tomates? Será que há gente a dormir sem problemas? Será que o professor (?) Mário Nogueira dorme descansado, na sua esquizóide pose de dirigente sindical/responsável político, neste quadro de irresponsabilidade geral que provocou, controla e chafurda?
Força e coragem, Maria de Lurdes Rodrigues. Estratégia, estratégia, estratégia, ceder eventualmente no acessório, mas manter o essencial. Clarividência política, muita. Por favor, continue a ver mais longe do que a maior parte desta gente. Os meus netos agradecer-lhe-ão, um dia, quando os tiver e chegarem à escola.

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